Toda cidade é um texto que conserva
uma memória histórica. É um símbolo, não só pelo que representa sociologicamente,
mas também pelo que de concreto manifesta seu urbanismo e sua arquitetura.
Sabemos mais a respeito de uma civilização por intermédio de sua arquitetura e
urbanismo do que por meio de qualquer de suas realizações.
A arquitetura é uma
expressão artística que interage no cotidiano da comunidade, funcionalizando o inconsciente
coletivo da sociedade onde se situa. A cognição que transparece da cidade é uma
associação comparativa de experiências históricas possibilitadas pelas
evocações semióticas contidas na sua produção arquitetônica. Como produto do
conhecimento construtivo materializado em suas formas, ela é uma configuração
psico-histórica pronta para ser interpretada, com todas as entropias daí
decorrentes.
Por exemplo, ao observar
Nova Iorque, aflora de sua matéria construtiva organizada a energia e o esforço
de uma sociedade para erguer um ícone do funcionamento do capital em sua forma
dinâmica, qual seja, no processo produtivo e no estabelecimento de contratos
que ordenam juridicamente o capitalismo. Do Empire State Building até Times
Square, da Estátua da Liberdade ao prédio da Organização das Nações Unidas, existe
a expressão de uma tentativa de melhorar a condição do ser humano em conflito
com as relações materiais de produção impostas pelo próprio capital.
Assim também, Brasília foi
planejada e construída como uma obra de arte viva, com uma concepção avançada,
libertária. Sua forma de avião, partindo do centro do País, clama a liberdade
de ousar um céu azul (representado pelo Lago Paranoá), tendo como cockpit a
Praça dos Três Poderes. Seus diversos monumentos, bastante semióticos, realçam
o simbólico ante uma moldura de paisagem plana, explorando representações
possibilitadas pelo concreto armado. Há, nela, uma sintaxe setorializada, com
cada parte da tessitura urbana dedicada a uma atividade social: setor bancário,
comercial, de diversões, de clubes, de embaixadas etc.
Embora tenha sido idealizada
e estabelecida como um projeto artístico representativo, ela foi decompondo-se
pela ganância especulativa de empreiteiros sem decência nem compromisso com o
bem-estar civilizatório e de uma elite oligárquica que se formou no processo
acumulativo do capital local, preocupada em locupletar-se pela via do poder
político. Aliado a isso, o traçado sensual das linhas curvas da Capital da
República não conseguiu prever os efeitos do intenso trânsito que, hoje, castiga
a cidade.
Brasília se esfacela em sua
arquitetura e em seu urbanismo, pela forma atabalhoada com que vem crescendo,
construindo monstrengos em desarmonia com sua escala, como a tentativa do GDF
de transformar clubes em hotéis na orla do Lago Paranoá, de construir de um
novo setor hoteleiro na 901 Norte (espaço cuja destinação é originalmente
residencial). Há iniciativas de irresponsabilidade completa, tal qual a péssima
ideia que teve o atual governo do Distrito Federal de incluir, no PPCUB, áreas
comerciais ao longo do centro do Eixo Monumental.
A cada momento, vai-se
incluindo uma expressão da decadência civilizatória da cidade, como espelho de
um caos urbano e artístico emparedador do humanismo com que ela foi pensada.
Tudo isso, com certeza, ficará para a posteridade, não como ícone ou símbolo
semiótico, mas como semiose indicial de desagregação urbana, social e psico-histórica,
demonstrando uma vocação mal resolvida da cidade para com ela mesma.
A fuga da simetria brasiliense
é, de certo modo, um subterfúgio à sua razão de origem, e revela a
desorganização de sua humanidade citadina. Para não perder a consciência da
própria identidade, Brasília precisa mergulhar periodicamente na análise do
projeto subjacente do Plano Piloto que lhe trouxe à luz. E recuperar, de tempos
em tempos, a semântica do traçado e da matéria que lhe organiza a feição.
(Cruzeiro-DF, 23 de fevereiro de 2014)