No nosso país, diferentemente de várias nações do mundo, há duas polícias
estaduais, a civil e a militar, e cada uma tem uma função, competindo à Polícia
Civil o trabalho investigativo, e à Polícia Militar, o trabalho de policiamento
ostensivo.
No
Brasil, polícias militarizadas surgiram ainda no século XIX, como milícias
estaduais. Durante a Primeira República, elas funcionavam, na prática, como
pequenos exércitos provinciais a serviço de seus respectivos governadores,
capazes de impedir que o poder central se tornasse incontestável e anulasse a
autonomia que as unidades federadas possuíam naquela época – eram dispositivos
de dissuasão antepostos contra as Forças Armadas. A partir do Estado Novo, as
Polícias Militares foram definitivamente alinhadas às doutrinas das Forças
Armadas, e, após o fim da Segunda Grande Guerra, a doutrina de segurança
nacional fez da PM uma força auxiliar do Exército, visando ao “combate do
inimigo interno”.
A
militarização policial é uma ideologia que consiste em entender um suspeito como
um inimigo externo ou um subversivo e identificar as favelas e os bairros mais
pobres como território que tem de ser conquistado e enfrentado com bombardeios
letais. Em suma, a concepção policial-militar
é de guerra contra a população que se insurja, seja numa greve, seja numa
manifestação popular, ou numa blitz de trânsito. É um modelo arcaico e que não
atende ao interesse publico.
Enquanto as forças armadas têm de ser treinadas para matar o
inimigo, a polícia deveria ser treinada para prender infratores da lei. Assim, o treinamento
do policial não deveria ser para combater um inimigo, mas para neutralizar
ações criminosas praticadas por suspeitos que têm de ser julgados pelo Poder
Judiciário.
A própria militarização policial faz com que o PM, desde a sua formação
instrucional e profissional, conviva com a injustiça dentro de sua própria corporação, desde
cedo, aprendendo que um superior hierárquico, por mais errado que esteja, não pode ser observado por seu
subalterno, já que, no militarismo, a hierarquia sobrepõe-se ao certo, e a
critica, que pode levar à correção de erros, é passível de punição. Então, os limites impostos de
modo exacerbado aos praças geram um estresse que se reflete em sua atuação no
seio da sociedade. A violência interna contra o próprio policial, a falta de
estímulo profissional e a formação deficitária limitam soldados, cabos e
sargentos à condição de meros cumpridores de ordens, o que gera graves
problemas na execução dos serviços de segurança pública.
Nesse
contexto, a formação da Polícia Militar não se apresenta em conformidade com o
modelo democrático fundado na cidadania e na dignidade da pessoa humana,
fundamentos da República Federativa do Brasil inscritos no artigo primeiro da
Carta Constitucional.
Documento
apresentado pela Organização das Nações Unidas, em 25 de maio de 2013, apontou
que, entre os principais problemas do Brasil, está a atuação exageradamente
violenta da Polícia Militar. A recomendação em favor da supressão da PM foi
obra da Dinamarca, que pediu na ONU a abolição do sistema separado de Polícia
Militar no Brasil, aplicando medidas mais eficazes para reduzir a incidência de
execuções extrajudiciais.
De fato, os policiais só devem matar nos casos extremos de
legítima defesa própria ou de terceiro; contudo, conforme a Human Rights Watch, a Polícia Militar de São Paulo tem um claro
padrão de execução de vítimas e de acobertamento desses crimes. Levantamento
realizado pelo Instituto “Sou da Paz” mostra que 93% dos mortos em supostos
tiroteios com a Polícia Militar de São Paulo, entre 2001 e 2010, moravam na
periferia da cidade, e 54% eram negros. Isso demonstra um verdadeiro
extermínio discriminatório. Segundo registro da Corregedoria da Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, pelo menos 300 pessoas são
assassinadas por ano pela Polícia Militar daquele Estado, sem contar os corpos
que dão entrada no IML com autoria desconhecida e corpos ocultados. Enquanto
isso, a polícia do Estado de Nova York matou, no ano passado, 11 pessoas. Por
sua vez, a Polícia Militar do Rio de Janeiro mata, anualmente, tantos civis
quanto o conjunto das forças policiais dos Estados Unidos, embora a população da
cidade do Rio de Janeiro seja de 5,5 milhões, e a dos EUA totalize mais de 250
milhões.
Além disso, a existência de duas polícias aumenta os custos para
os cofres públicos que precisam manter uma dupla infraestrutura policial, além
de criar uma rivalidade entre policiais que seguem duas carreiras completamente
distintas: a Civil e a Militar. Essa rivalidade atrapalha o funcionamento de
todo um sistema de segurança pública, com os policiais de cada corporação
encarando-se não como colaboradores, mas como pertencentes a instituições
opostas que devem digladiar-se para que uma se sobreponha em poder à outra.
Para piorar, o que se tem são duas metades de polícia que ficam brigando uma com a outra e não
compartilham informação.
As
últimas manifestações populares no Brasil e o assassinato do operário Amarildo
por policiais da PMRJ reacenderam o tema da unificação policial com
desmilitarização, mas, para ocorrer a desmilitarização, será necessário alterar
a Constituição, por meio de Emenda Constitucional, de forma que Polícias
Militar e Civil constituam um único grupo policial, e que todo ele tenha uma
formação civil. Pelo menos, três Propostas de Emenda à Constituição sobre o
tema – as PECs 51/2013, 102/2011 e 432/2009 – tramitam no Congresso Nacional: a
PEC 51, de 2013, de autoria do Senador Lindberg Farias, propõe desmilitarizar
as polícias dos Estados e criar apenas uma força de segurança; a PEC 102, de 2011, de autoria do Senador Blairo Maggi, autoriza
os Estados a desmilitarizarem a PM e unificarem suas polícias, caso julguem
necessário; e a PEC 432, de 2009, de autoria do Deputado Federal Celso
Russomanno, visa à unificação das Polícias Civil e Militar dos Estados e do
Distrito Federal, à desmilitarização do Corpo de Bombeiros e dá outras funções
para as guardas municipais.
A
unificação, com desmilitarização, das duas Polícias, precisa ocorrer mediante a
fusão das atividades de polícia judiciária com as de
polícia ostensiva e de manutenção da ordem pública, surgindo dessa fusão uma
nova polícia com características híbridas. Desse modo, todo órgão
policial poderia se organizar em ciclo completo, responsabilizando-se
cumulativamente pelas tarefas ostensivas, preventivas, investigativas e de
persecução criminal.
Por outro lado, a unificação tem
de ser efetuada sem ferir os direitos adquiridos pelos policiais de ambas as
corporações. Para tanto, é preciso que se levantem quais são as principais
dificuldades e desafios para garantir a efetiva segurança ao cidadão com
melhorias dos direitos dos policiais. Afinal, não é possível que o sistema de
segurança pública de um Estado sobreviva com policiais que ganhem salário-base
de apenas 4 mil e 700 reais (caso dos soldados da Polícia Militar do Distrito Federal)
ou de somente 833 reais (caso dos soldados da Polícia Militar do Ceará) – até
porque tais remunerações constituem um estímulo à corrupção.
Alterações nos
cursos de formações dos policiais, na estrutura organizacional e na
legislação devem alicerçar a transição e as novas diretrizes das Polícias
Unificadas até a completa fusão das instituições, que pode ser efetuada de modo
gradual para que não gere impactos negativos na segurança pública.
Apesar
de significar um avanço em termos de política de segurança pública, tais
medidas exigem coragem, desprendimento, grandeza de espírito público e
determinação política.
(Cruzeiro-DF, 22
de dezembro de 2013)
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