segunda-feira, 21 de abril de 2014

AS COTAS RACIAIS COMO MECANISMO DE JUSTIÇA SOCIAL

A sociedade brasileira estruturou-se, desde o início da colonização, sob a égide da extrema desigualdade. Desde as expedições colonizadoras, esta terra tem sido o paraíso dos privilegiados brancos europeus e o túmulo dos que sempre foram os pés e as mãos trabalhadoras a gerar a riqueza desta nação. Essa situação desigual chega até hoje, principalmente tangível no preconceito racial, na discriminação aos negros.
Ao arrepio da Constituição de 1988 e do moderno ordenamento jurídico brasileiro, ainda fica aquém do necessário o tratamento que o Estado confere à questão do combate ao racismo e da valorização dos afrodescendentes no País. Nesse sentido é que a política de reserva de cotas para os negros no acesso à educação superior é um instrumento de democratização compensatória às injustiças sofridas por eles no decorrer da nossa história.
Quando da instauração da economia açucareira, já na primeira metade do século XVI, foram os negros trazidos da África para trabalhar como mão de obra escrava. Com o ignóbil tratamento que lhes foi dado pelos antigos latifundiários, foram reduzidos à situação de instrumentos de produção, em condição idêntica à dos animais, sem amparo de qualquer direito, sequer do direito canônico, e desumanizados por um cruel sistema que trazia, na mesma situação, o curral e a senzala.
Tamanha contradição engendrou uma característica típica dos trópicos daqueles tempos, em que os senhores de escravos não continham seus instintos bestiais na faina a que obrigavam os africanos e seus filhos aqui nascidos a exaurirem as energias em uma jornada sangrenta. Os instintos animalescos daqueles brancos escravocratas iam ainda além: abusavam sexualmente das negras, separavam-nas dos filhos, vendiam-nos e deixavam um rastro de lágrimas, sofrimento e morte na alma de todo um povo, que terminava ficando sem saber quem eram seus avós, pais e irmãos, inclusive filhos, que vinham à luz sem ter gravada a fisionomia ante os seus ascendentes. Negro não tinha família, sobrenome nem dignidade.
Assim se estruturou a sociedade brasileira durante séculos: do quinhentismo ao oitocentismo imperial. A diacronia da dominação escravocrata produziu, em quatro séculos, a desigualdade que apartou os negros dos brancos, no Brasil contemporâneo. Hoje, quando alguém imagina a figura de um banqueiro, executivo de empresa ou cientista, vem-lhe logo à mente uma pessoa branca; quando pensa em uma empregada doméstica, faxineiro ou favelado, o pensamento perfila uma negra ou um negro.
Então, a realidade discriminatória e preconceituosa cristalizou no brasileiro um imaginário para brancos e outro para negros: aqueles, incluídos socialmente; estes, alienados da convivência fraterna entre cidadãos iguais.
O tratamento desigual aflora no contato pessoal de brasileiros possuidores de cores de pele diferentes, exacerbado pela hipocrisia latente de quem declara ser esta uma nação em que existe democracia racial. Os clichês frasais caricaturam “o negro de alma branca”, “ele é negro, mas é honesto”, “ela é negra, mas é cheirosinha” e tantos outros chavões que enrustem sordidez e impiedade.
A sociedade brasileira tem muito que acertar com a afrodescendência deste país. Deve-lhe tudo. Foi contumaz na desumanidade com que inferiorizou o negro na senzala. Foi castradora de seus homens, estupradora de suas mulheres, genocida de nações africanas inteiras que para cá foram raptadas.
O Estado impediu o negro de ter acesso à educação mais elementar, entregou-o à “justiça” privada dos fazendeiros, que fizeram da chibata o apenamento banal. Negou-lhes nacionalidade, religião, liberdade e salário.
Após a “libertação dos escravos”, abandonaram-nos à sorte, não lhes deram trabalho, moradia nem instrução, e os “donos do poder” os expulsaram do campo, fazendo-os engrossar as levas de êxodo rural, e geraram as primeiras favelas. Enquanto isso, substituíam o trabalho negro pelo de imigrantes italianos, portugueses, alemães, todos pagos com salário mensal, mas, aos negros, puseram ao relento, sem trabalho e sem salário.
Atualmente, a sociedade branca costuma reclamar quando a lei a obriga a compensar tantos cerceamentos ao negro com um sistema de cotas que lhes garanta acesso ao ensino superior ou a vagas nos concursos públicos. Mas com que empertigamento se arroga a tal?
Esquecem o sangue que os negros verteram pelo Brasil na Guerra do Paraguai e na 2ª Guerra Mundial, a finíssima culinária, o ritmo do samba, do chorinho, da capoeira, o candomblé, as esculturas barrocas mineiras e baianas, o complexo sistema de lendas, a contribuição linguística que, aos poucos, foi impondo à norma culta sua predominância irrefutável. É preciso que haja redução da desigualdade na oportunidade de acesso aos direitos de cidadania.
Portanto as ações afirmativas para a seleção de candidatos negros ao ensino superior, às vagas nos concursos públicos e a ampliação dessas políticas compensatórias de tantas ignomínias históricas são instrumentos de combate à desigualdade social em nossa pátria e, ao mesmo tempo, elementos de reflexão de todos os brasileiros sobre a discriminação racial.
(CRUZEIRO-DF, 21 de abril de 2014)
                                                                                                                             

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